domingo, 10 de dezembro de 2006

O Anexo



Ando em fase de revolta grave contra o estúpido quotidiano. Tudo me irrita: o pó dos móveis, as promoções no supermercado, as birras com ou sem justificação, o autismo do gajo, a falta de génio das chefias. A minha vida anda um tédio completo. O eléctrico nunca descarrila comigo lá dentro, a chuva continua a molhar-me a roupa, o tipo não me surpreende (nem eu a ele) e o Primeiro-Palerma insiste naquela conversa fiada da crise-blá-blá-blá-sacrifício-blá-blá-blá. Há dias apanhei por acaso um concerto extraordinário na ZDB. Foi a coisa mais fora do vulgar que me aconteceu nos últimos tempos. De resto, tudo se passa com uma previsibilidade insuportável. Eu própria estou insuportavelmente previsível.

Mas ontem...

Ontem uma amiga de longa data, e agora vizinha de bairro, convidou-me para lanchar no anexo dela. A Helena tem uma alminha rara. Sempre nos entendemos bem. Houve um dia, teria eu aí uns 8 anos e veio à conversa, já não me lembro bem a que propósito, um trauma dela. Uma fobia, um medo, qualquer coisa por aí. Ao meu porquê, responde-me com a Segunda Guerra Mundial. Demorei a perceber. Para mim, a segunda grande guerra era uma coisa longínqua volta e meia desenterrada pelos episódios que os meus avós contavam. Coisas simples, como a chatice que era conseguir contornar o racionamento do açúcar. A parte dos campos de concentração era mais difícil de assimilar, não havia sabedoria histórica que me conseguisse enfiar aquilo na cabeça. Fosse como fosse, eram histórias de avós. Velhotes. Como, mas como é que era possível, que a minha amiga tivesse memória da Segunda Guerra? Havia aqui uma impossibilidade qualquer.

Descobri nesse dia que a Helena não tinha mais ou menos a minha idade. Era mais nova do que os meus avós, sim, mas mais velha do que a minha própria mãe!

Ontem, fui lanchar ao anexo dela. Tem o hábito de levar os amigos para o anexo porque lhe faltam as assoalhadas e a pachorra para organizar festas. Nunca põe os pés na cozinha, ponto final. O convite repetia-se há já algum tempo, mas por um motivo ou outro as malditas agendas andavam sempre desencontradas. Este sábado lá fui, com as duas crias penduradas. Recebeu-nos sorridente, à porta. Ou melhor, ao portão. Primeiro, fez-nos uma visita guiada pelos maravilhosos jardins. Contou-nos a história do seu anexo, de como esteve à beira da ruína quando foi propriedade do Estado e de como foi finalmente recuperado. Depois entrámos no edifício propriamente dito e espreitámos todos os recantos até chegarmos ao nosso destino - o bar. Isto é um castelo? - perguntava a MB, maravilhada. Não, é um palácio - respondeu a minha amiga.



Com o sentido de humor que a caracteriza, a Helena chama ao Hotel Pestana Palace "o meu anexo". Conta que sempre se passeou por ali e que lhe doía a alma ao ver o belíssimo palácio a cair aos pedaços. Depois chegou o dia em que foi vendido e enfim recuperado. Quando o hotel abriu, resolveu ir ver como tinha ficado. Entrou, relata, nos seus trajes habituais - chinelos de enfiar o dedo, balandrau coçado. Foi tratada como se fosse uma rainha. Desde então passou a receber os amigos no bar do Pestana, ali no Alto de Santo Amaro.

E ali escapei ao tédio por uma tarde, comendo tapas e bebendo vinho tinto.

2 comentários:

Caiê disse...

A vida não é nada fora do vulgar, as pessoas é que são.

Mimi disse...

Caiê!!!!
bom ponto de vista...