quarta-feira, 16 de agosto de 2006

As férias grandes

Brincadeiras sem fim debaixo de um calor sufocante, de secar qualquer pinga de água na garganta, ao longo de dias que nunca mais acabavam.

Dias amarelos, mesmo. O restolho, da palha cortada bem rasa, cortava-nos os pés, a mim e à minha irmã. Nós usávamos daquelas sandálias que nos protegem das picadas do peixe-aranha e que nos deixava os pés às riscas, no final do dia, tal era a camada de pó.
Tive a sorte de ter “avós do campo”. As férias de Verão eram passadas a subir figueiras, casas autênticas para quem já se dignou a olhar com atenção para uma figueira algarvia, que estende cada braço até ao chão.
A minha figueira de adopção tinha 2 quartos, no primeiro piso. Uma varanda para quem se aventurasse a subir mais um pouco, com direito a balcão para pousar os braços e tudo.
Cá em baixo, um tronco retorcido fazia lembrar uma sanita, outro mais flexível, uma porta de passagem, ao estilo do faroeste. E ainda tinha sofás, duros como troncos, está-se mesmo a ver.
Durante aqueles intermináveis 3 meses as brincadeiras com os meus primos dividiam-se entre estas “casas” e as corridas de carrinhos de mão, sempre que os apanhávamos vazios de amêndoas, que abrem para serem colhidas nestes meses quentes.
A casa dos meus avós fica situada junto a uma estrada alcatroada super inclinada. No topo tem um reservatório de água enorme, mesmo ao lado da eira para onde o meu avô, noutros meses mais adiante, levava o trigo e as favas para pôr ao vento.
Mas voltando ao alcatrão: Colocávamos o carrinho de mão no topo da ladeira, com um piloto a bordo. Daí embalávamos o carro, sempre a correr e quando este tivesse atingido a velocidade de ponta, soltávamos o destino, e o piloto que se aguentasse no carro desgovernado. Descíamos aos “esses” e cambalhotas até parar, invariavelmente, na berma entre as ervas secas. Hoje sei que não queria ver nenhum dos meus filhos a protagonizar a brincadeira, mas o certo é nunca ninguém se magoou!
Na eira também havia a fase dos fardos de palha, às centenas, empilhados como tijolos num labirinto para cumprir até ser noite. A custo voltávamos a casa, com palhas até aos cabelos, metidas pelas meias se as tivéssemos, a saírem pelos buraquinhos dos atacadores. Dava uma comichão de loucos!
À noite, o jantar servia-se na rua, à luz de uma lâmpada poderosíssima que apagava quando aquecia. Nessa altura a de 40 watts lá fazia, mal, as vezes da outra.
Lembro-me que, como qualquer criança, me perdia nas conversas dos grandes. As refeições eram intermináveis, uma seca. A única distracção de jeito era ver as osgas, que deslizavam nas paredes caiadas da casa da minha avó, à caça dos milhares de mosquitos e borboletas hipnotizados pela luz.
Todas as janelas tinham rede mosquiteira, verde. Mesmo assim, antes da hora da deita a minha mãe descarregava latas de “Banzé” ou “Dum-Dum” pela casa.
À espera que o cheiro desaparecesse, ainda ficávamos deitados numas espreguiçadeiras feitas pelo meu pai. Noite em que não víssemos um par de estrelas cadentes, não era noite não era nada.
No dia seguinte era acordar e vestir o biquini para mais uma manhã de praia. Uma manhã que tantas vezes ia até às 2 da tarde. Ainda apanhámos uns valentes escaldões, eu e a minha irmã. E na hora da sesta é que eles apertavam, junto à marca dos calções! Pois é, íamos para a cama, desse por onde desse. Para digerir as sardinhas assadas na brasa, acompanhadas de batata pequenina e redonda, com pele, e de grandes doses de gaspacho, tão fresco. Também frescas vinham as melancias, enormes, colocadas logo de manhã no chafariz, a flutuar entre os peixes que iam escapando às sorvedelas das vacas que ali vinham matar a sua sede.
De vez em quando venho também a estas recordações matar a minha sede de menina. Hoje foi um desses dias.

3 comentários:

mai xinti disse...

hummm...doces memórias de PTF!outras árvores e outras memórias mas vou tb beber das minhas.

putafina disse...

As minhas memórias de férias moram no Algarve. Para onde me mudei há 2 anos e pouco.
Curiosamente, se a vida não der outra volta de regresso a Lisboa, será de onde os meus filhos irão beber as deles, um dia mais tarde!
Também eles têm uns "avós do campo". Não com vacas, burros, cabras, porcos, coelhos ou perús, mas com galinhas, patos e muitos metros quadrados para correr. E as mesmas amendoeiras, figueiras, alfarrobeiras e oliveiras.

mai xinti disse...

Pois eu sou uma lisboeta "sem terra" - ainda que vá encontrar raízes lá para o Ribatejo. Mas há muito campo e sobretudo muita praia na minha memória - um ano inteiro de Ericeira, em férias e fins de semana, quando ainda havia pescadores e peixeiras, as casas eram todas de um único piso térreo, e os quintais pegavam uns nos outros e nós saltávamos os muros para ir a casa dos amigos,com o vento que assobiava quase permanentemente...