domingo, 13 de novembro de 2005

Castillium 10

São umas pílulas brancas, com um risco ao meio, para as poder partir assim com a ponta da unha, enfiar meia de manhã, outra de sobremesa ao almoço e uma inteirinha à noite. Ando com elas na mala há uns cinco meses, e antes de ir à farmácia comprá-las, esperei que tudo de repente se convertesse num conto de fadas, daqueles em que ninguém pergunta: mas como raio é que a princesa ficou anos no quarto mais alto da torre mais alta à espera que o príncipe encantado matasse o dragão para a salvar? Comeu o quê a rapariga? Como é que se aguentou tanto tempo fechada dentro de quatro paredes, sem telefone nem Internet? Em dias de período, onde é que ia aos tampões? Pronto. O conto de fadas é outra história e os meus dias andam há mais de um ano a atropelarem, bem a atropelarem-me a mim mesma. Um dragão que cospe fogo, um quarto fechado, um expectativa que os dias adiam para os meses e os meses continuam sem dar resposta. Perdi uma amiga, que morreu em Novembro passado. Perdi um trabalho e com ele o meu melhor amigo. Ganhei um equívoco. Estive quase dois anos a ver o Tejo negro, da janela aberta para a noite, trancada em casa, com a minha filha a dormir, sem poder pôr o pé fora de casa, pois o meu cavaleiro tinha a maldição de um work every night e at weekend também. Depois aconteceu isto e aquilo, isto e aquilo, e as minhas forças chegaram aos níveis das reservadas de água do país, à vitalidade dos hectares consumidos pelo fogo deste Verão.
O telefone começou a tocar cada vez menos. Eu comecei a falar cada vez mais alto, mas sozinha. Às vezes lá havia uma amiga que apanhava com os resumos de algumas fendas sem chave, ou com a verborreia de certas chaves de fenda que simplesmente não conseguia usar nem para abrir nem para fechar nada do que caía aos bocados no meu corpo, na minha cabeça. Outro dia tive de escrever uma autobiografia de 2 mil caracteres, ou seja, definir a minha vida em 10 frases. A primeira coisa que escrevi foi: “Idade da crucificação e ressurreição”. De facto, senti-me pregada a qualquer coisa imóvel, nos pés e nas mãos. Mas acredito, tenho a certeza, que é também o momento de nascer outra vez, e é isso que tento fazer quando não sou consumida pela derrota do quotidiano, e enquanto vou engolindo pílulas umas atrás das outras. Não sei já quem sou. Até parece mal, mas é um bocadinho assim. Não há muito tempo, agarrei num lençol velho e enfiei lá dentro 40 por cento do meu guarda-roupa. Fechei a coisa com um nó e entreguei-a a um tipo na feira da ladra, por nada, nem um cêntimo. Não é difícil concluir que passo uma crise de identidade, semelhante à que é normal por volta da adolescência.
Sei que afinal tudo gira à tua volta nas voltas que repito sobre mim, e nessa espiral estou sem nome, sem morada, a gemer em silêncio, na cama, em sonhos de tarântulas de botas altas e cabeleiras postiças. Gemo como o fazes às vezes, porque o imaginário na noite e no cérebro tem destes medos, e as palavras saem assim, autistas da nossa boca. Gemo como o fazes, como o fizeste ainda agora, e eu permaneci sentada, subi a calçada, ouvi a gaita do eléctrico, desliguei a sopa, deitei-me nos lençóis suados dos anos quentes, dos fogos extintos, do medo do futuro, e da vontade de agarrar em mim, na tua mão e levar-te para longe de tudo isto. Não sei, não sei se estás a ouvir-me, se me ouves melhor do que penso, se posso pedir-te conselhos, fi-lo hoje pela primeira vez, e não me disse-te mais nada, acho que não me disseste mais nada além de um ‘cozinha não, cozinha não’. Agora não queres os meus beijos porque ficas com lipstick, afastaste-me a cara explicando bem porquê e nesse instante perguntei-me se deveria deixar de me esborratar de vermelho, mas logo decidi que não. Não podemos fugir de tudo.

2 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
charlote disse...

texto lindo, de nos deixar, a nós solteiras e sem filhos, a pensar na (pequena) dimensão dos nossos aparentemente grandes problemas