domingo, 13 de novembro de 2005

Pensadora

Já a tinha colado de uma outra vez. Não ficou perfeita, pelo menos aos meus sentidos. Insistia nas opiniões de outros que se revelavam atentos aos meus caprichos.
– Está perfeita.
– Mas não vez aqui esta ranhura?
– Qual ranhura?
– Esta. Aqui a cola não ficou bem disfarçada.
– Não vejo nenhuma cola.
– Olha lá bem.
– Não, desculpa mas não vejo nada de mal aqui.
Sempre que lhe limpava o pó sentia cada pedaço que tinha colado. Até mesmo aquelas fissuras que tinha reparado com precisão cirúrgica. O tacto tem a crueldade de nos mostrar o que não os olhos não sentem.
Com o passar dos tempos, gastos por outros tantos tempos passados, deixei que o esquecimento dos outros me apoderasse. Para o agrado geral deixei até de lhe limpar o pó. Com a inactividade, a camada do ranço poeirento deu-lhe o ar místico da herança das gerações mortas.
Hoje alguma coisa me fez olha-la embasbacada. Não percebi se se tinha dado ao tempo ou se era o tempo que a tinha possuído contra vontade.
Decidida arrastei com o braço a confusão da mesa, preparei a cadeira para as vontades da demora, coloquei a pensadora em lugar destacado no espaço agora vazio. Agarrei num pano embebido na fúria do vento e lavei-a com o carinho das bolas de sabão na água morna de um banho de imersão.
Louca.
Devia ter resistido ao impulso lhe retirar as demências.
Agora, entre a surpresa e a tristeza do estilhaçar dos tempos já nem o cuspo lhe vale.

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