quarta-feira, 23 de novembro de 2005

A Sofia e os meninos da "Casa Mãe"

A profissão de jornalista não se compadece com horários rígidos de escolas e infantários. Foi por isso que o prior António Cardoso propôs que levasse a minha filha no dia marcado para a reportagem sobre a "Casa Mãe".
Naquela tarde quente de Julho estacionei à porta do centro de acolhimento temporário para crianças em risco, em Aveiras de Cima, no concelho de Azambuja.
Subi a íngreme escadaria branca que dá para o refúgio secreto dos meninos que ali preenchem os dias. Protegidos dos maus-tratos, da violência psicológica, da falta de condições dignas para viver.
De um lado levava o saco com a máquina fotográfica e bloco de apontamentos. Do outro lado a Sofia, 10 meses acabados de fazer. Esperava-me uma das reportagens mais difícieis da minha vida. Como iria separar o meu papel de mãe do que repórter?
Foram os meninos da "Casa Mãe" - órfãos de pais vivos - como lhes chamou o prior António Cardoso - que me indicaram o caminho. A Sofia foi imediatamente "adoptada". Instalei-a no carrinho e logo duas meninas se ofereceram para a passear pela casa. Tal como faziam habitualmente com a pequena Carol de cinco meses. A bebé nasceu numa madrugada gélida de Fevereiro, no mesmo dia em que a "Casa Mãe" abriu as portas. A ausência da progenitora era ali compensada com uma alargada família de irmãos.
A Sofia e a pequena Carol mantinham-se silenciosas percorrendo os corredores da casa. Mimadas com bonecos e brincadeiras. Eu ia recolhendo elementos para a reportagem.
O meu trabalho estava agora triplamente dificultado. Tinha acabado de quebrar todas as regras de objectividade e distanciamento e seria difícil deixar de lado as emoções.
Como iria explicar aos leitores que apesar da dureza das palavras "acolhimento temporário", as crianças que ali se refugiava emanavam doçura e tranquilidade? Apesar dos maus tratos, da violência psicológica, da falta de condições dignas para viver...
Percebi que naquele sítio mágico a infelicidade fica - nem que seja por uma temporada - do lado de fora do portão.

Sem comentários: