quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

AnteSpassados

A trisavó era enfermeira, e vestia fato e gravata, nos fabulosos anos 20, em Berlim. Uma mulher corajosa, que escondeu judeus na sua casa. Há umas fotografias gastas nos álbuns de família. A bisavó conhece bem a biografia, e conta-a com um rigor e humor cortantes, duas características que estende sobre a mesa, ao lado dos ovos soviéticos orgulhosamente preparados. Hoje tem 75 anos, fuma cigarros contra a vontade do médico e lê livros de espionagem na sala da sua casa na capital alemã (ex-Leste). Economista, apaixonada pelo ideal de um hemisfério germânico de esquerda, na última vez que estivemos juntas, há um ano, pelo Natal, em Tavira, cravou-me um 'Camel' no varandim da casa alugada com vista para o azul. “Já não fumava um destes há mais de meio século. Depois da guerra compravam-se a preço do petróleo no mercado negro”. Este é um gomo da ascendência da minha raposa. Outro: a trisavó portuguesa era a curandeira da aldeia, perdida no meio de uma serra cheia de figuras místicas. Batiam-lhe à porta as mães dos meninos doentes a quem ‘virava o bucho’ perto da fogueira. Não existem retratos. Só as impressões que as duas gerações seguintes transmitiram de boca em boca. Laura, a bisavó, não seguiu as pegadas da mãe. De canela ao léu, em pleno Inverno chuvoso, subia às oliveiras do quintal, já com 80 anos nos calos. Tinha uma memória de elefante. Sem saber ler nem escrever, deu lições de vida, pela força, inteligência e sátira incomparáveis, até bem perto de fechar a porta e ir-se embora. Tenho muitas saudades daquele escárnio atípico. Chorava e ria ao mesmo tempo, quando se lembrava do que tinha passado na vida. E isto é uma coisa que nunca observei em rigorosamente mais ninguém. Os dois universos, estes dois mundos, assim cruzados, parecem absolutamente alienígenas.
Às vezes imagino como seria pô-las às quatro na mesma casa a passar um fim-de-semana. Outras vezes penso sobre as rotinas dos meus dias, e pergunto-me como entrarei nesta escada de ser em devir?

5 comentários:

Anónimo disse...

É absolutamente extraordinária esta sintonia... ET PHONE HOME...

Há dias em que me vejo entre os vapores das panelas e os fatos de ballet que não secam e há dias em que os talões do multibanco me atiram ao tapete por KO e ainda há os dias em que vejo ogres assustadores à entrada do supermercado e depois há os dias em que o meu cabelo insiste em contar a toda a gente que estou cansada. É certo que tenho mais dias felizes do que maus. Mas nestes dias, nos dias maus, nos dias em que não me reconheço, penso nas mulheres da minha família. Penso nelas e nas boas e preenchidas vidas que tiveram e grito: MAS COMO É QUE ISTO ME FOI ACONTECER?!?! *#&!#!

Acontece que às vezes estou na rua e as pessoas olham para mim e depois desviam o olhar, receosas. E então lembro-me outra vez delas e rio-me. E penso como é bom ter tido antepassadas meio doidas. E fortes. E tão diferentes. E depois ainda há a minha sogra, a única que conheço da outra parte genética. Também ela meio doida, forte e acutilante, totalmente analfabeta, ao contrário das minhas, todas letradas. Igualmente sábia. Uma herança genética explosiva. Uma óptima mistura.

E depois olho para a Maria Leonor e interrogo-me de que planeta terá vindo de tão bizarra e imprevisível criança que é. E olho para a Maria Beatriz e suspiro por ainda não ter encontrado o botão OFF e fico incrédula com aquela imaginação delirante. E depois penso nelas, em todas estas mulheres, e vejo-as ali, reunidas, em amena cavaqueira, a querer falar ao mesmo tempo.

Olho para as minhas crianças e fico ansiosa por ser avó.

Isabel Freire disse...

WV, tenho uma curiosidade imensa por perceber essas histórias de gente que emigrou para África com 16 anos, à procura do Black Dream. Fala-se muito do retorno, mas pouco da chegada, da descoberta, da emigração massiva, das almas negras em corpos de branco. Eu adorava ter-me enfiado num barco com duas maletas redondas, um par de filhos, um lenço ao pescoço e uma saia travada, para ir viver num continente desconhecido. Bom, de facto, acabei de coser a bainha de umas calças, amanhã tenho de inventar mais duas prendas e estou sem paciência nenhuma para as mesmas lojas do costume, raios partam. Também tenho dias como descreves Inês, tirando ou pondo, mas pouco. O cabelo, as garras, a paciência de corno, a vontade de passar invisível na rua, uma língua de fora e um buuuuuu às caras que me vêm com a ladainha da fotografia, de se estar bem para a fotografia. E depois acontecem pequenas coisas fabulosas - make my day – que me ajudam a inventar qualquer obstinação. Também hoje pensei agarrada à raposa, que 15 anos passam num instante, pelo menos os últimos correram a sete pés, e como é que nós seremos as duas nessa altura? Precisava de uma batalha - instinto puro - qq coisa que me fizesse emancipar-me no combate. E a guerra dos sexos está descoberta, a luta de classes ultrapassada, a pena de tédio abolida – irremediavelmente!!! Não é uma questão de fazer a história avançar, ou outro nobre motivo. Apenas falta de adrenalina.

Anónimo disse...

colar cartazes às tantas da manhã?
consultar o blog substrato ;)

Raquel disse...

Olá descobri-vos hoje através do blog da Denise...gostei do que li...é sem dúvida um blog diferente.

Especialmente disto
http://mmas.blogspot.com/2005/12/eu-sou-mma-mesmo-mma-e-vcs-todos-vo.html

É este equilíbrio que me tem sido difícil encontrar.
Vou voltar mais vezes.

Isabel Freire disse...

Olá raquel, gostámos da visita. Vai dando notícias. Vamos pressionar a MMÁDONA para continuar a compor. Já temos saudades!!!
Quanto às gravações e 'colações', WW e Inês, acho ambas óptimas ideias.
bjs