terça-feira, 18 de abril de 2006

Objecto de afeição

Dei conta dele por razões negativas. Que mandrião, pensava eu.
Um mês passou e começou-me a ser vício o ir espreitá-lo à janela. Ao fim do terceiro mês já era tema de conversa e ponto de atracção dos convivas cá de casa.
– Então, há novidades do tipo?
– Ó, continua tão enamorado como sempre.
E assim se passaram seis meses, sete talvez. Sempre que o via ali estava ele empoleirado em cima do muro a olhar de forma contemplativa aquele buraco que teimava a ser um pouco maior de dia para dia. Olhava com óculos de sol, depois olhava sem óculos de sol, depois ainda em dias de chuva, assim como nos dias de sol ou vento. Por vezes ao fim-de-semana também olhava. Vi-o apalpar e dedilhar aquele e outros pré-avisos de buracos vezes sem conta. E sempre de forma interessada, sedutora. Um dia fez-se acompanhar de martelo e cinzel e abriu uma racha de alto a baixo, escandalosa e muito mal encarada. Depois colocou uns tipo entraves aparafusados a dois toros de madeira e ali ficou a contemplar a obra por mais uns meses. Um dia fez-se acompanhar por um amigo e ficaram os dois durante, pelo menos, três horas a olhar. Houve ainda um outro dia em que eram dois os amigos contemplativos e, cá de cima, adivinhei o pedido para tocarem e dedilharem o buraco ao que ele acedeu com um esticar de braço de toquem mas não muito se faz favor.
Um dia dei-me conta que a racha tinha sido revestida com cimento. Raios, perdi esta parte, reclamei para comigo. Tornei-me mais atenta e aguçada, não podia perder nada. Nos dias seguintes voltou a normalidade da observação enamorada e eu descansei. Depois de nevar, chover e de me convencer que aquilo era mais que qualquer coisa, comecei a imaginar justificações sentimentais: aquilo é algo que ele imagina como que uma re-objectivação de alguém que um dia existiu para além de sonhos, ocorreu-me até ser um qualquer fetiche, ou uma outra forma de pensar desconhecida. É que tirando as vezes em que os amigos apareceram eu nunca o vi partilhar aqueles momentos com ninguém. Era uma coisa íntima e eu tornei-me uma voyeur reles.
Um domingo acordei aos gritos de ‘anda cá ver depressa’. Cheguei à janela depois de ter evitado a parede mas ter abalroado o banco de corredor. Ahhh! Afinal ele partilha a coisa. Estava ele, uma mulher e uma criança a olhar o muro pelo lado de dentro. Ao lado estavam os apetrechos de pintura e cobertores, plásticos, manta de viagem e lancheira. Veio para ficar, com a família. O fim aproxima-se.
No Sábado, melhor na madrugada do domingo passado, sim, sim, às duas ou três da manhã do domingo de Páscoa ele estava a dar uns retoques de pintura no lado exterior do muro. No mesmo lugar onde antes havia um buraco que passou a ser racha emendada com todo o cuidado, estava ele a retocar a pintura. Tinha posto um cobertor no carro que estava estacionado mesmo ao pé e subia e descia a escada de madeira encostada ao muro de três metros de altura para confirmar que os pormenores estavam a gosto. Deliciei-me a vê-lo a puxar a escada, a custo pois ele tem uma constituição física fraca, uns dois metros à direita e pegar num pincel pequeno molhado em tinta branca, certificar-se que não pingava, subir e pincelar um nadinha de nada, descer, ver, tornar a subir, dar mais um toque de nada, tornar a descer e tornar a deslocar a escada um ou outro metro à esquerda… Tudo isto à luz amarelada do candeeiro de rua. Agora o muro do prédio em frente está pronto, e se eu um dia tiver problemas com muros é aquela personagem que eu quero a tratar deles.

o objecto

3 comentários:

Isabel Freire disse...

O Homem-Objecto...
Por que motivo este conceito não vingou ainda?
Homem-Abjecto é mais comum, mas a "História do O" tem mais interesse!
Esse tipo vem de onde? I mean... de que planeta?

péssima disse...

És uma utópica...

Não sei bem, mas o tipo até é engraçado, pequenino, mas engraçado.

Mimi disse...

Homem-Objecto soa-me bem. Mas não sendo possível - sei lá, homem-objecto, que coisa tão politicamente incorrecta - improvisa-se com o que há à mão. E não é que funciona? Ó se funciona! ;)