quarta-feira, 5 de abril de 2006

Pouca terra, pouca terra

Do fim da linha aparece um grande nariz vermelho. Pouca terra, pouca terra... O seu trovejar é ensurdecedor. Deixei de ouvir a voz do outro lado do telefone móvel, que dizia boa viagem, etecetra e tal. Desliguei e subi para as cavalitas deste bicho que não deixa os carris nem por nada, pelo menos é bom que assim seja. Para descarrilar já basta a nossa vida.
Embarquei em pulgas na viagem até à capital, até às MMÁS, até aos últimos 50 anos de música italiana, em Alfama.
p’ra aí uns 10 que não me sento num banco destes e, sem querer, viajo um pouco mais atrás, aos tempos em fazia a viagem com a minha mãe e irmã, mas no sentido inverso. Os bancos eram de napa castanha. De Verão queimavam-nos o traseiro e no Inverno o frio subia até à alma.
Os tropas já não estão em maioria nos corredores deste Domingo e os que fazem o regresso ao quartel, já não caem podres de bêbedos em cima de quem os apanhar. Elas também já vestem a farda e seguem viagem com os seus cabelos muito bem apanhados, que isto de jurar bandeira não é coisa para fazer de cabelos ao vento.
A minha companheira de viagem regressa aos estudos. Leva na mochila os planos de vida e os apontamentos de um curso da Nova de Lisboa. A da frente exibe na frontpage do portátil as células sanguíneas em viagem até à medula.
Três senhoras dos seus cinquentas bem feitos ainda andam levantadas sem saber se estão na carruagem certa, apesar de já terem entrado nas entranhas do bicho há duas estações.
Atrás de mim segue outra que suspira a novena. Chamou-me a atenção o toque das avé-marias no padre nosso.
Uma estrangeira faz renda, uma brasileira vai de orelha colada ao móvel a dar indicações à colega, que o pintor vai 2ª feira à mansão e que ela depois logo lhe paga.
Um homem, escondido atrás dos seus Ray-Ban mata a cena toda.
O meu farnel de sandes de queijo e Bongo que a minha mãe preparava foi substituído por uma ida à carruagem do restaurante. Pedi uma mista e uma Sagres e lá deixei 600 paus!
A paisagem que desfila do outro lado do vidro não mudou muito. Os porcos pretos continuam a pastar nos campos, as cabras mantêm-se presas aos montes, as ruínas continuam a ser engolidas pelo mato. As ribeiras estão cheias, como noutros tempos.
Os tempos em que os comboios também andavam cheios de “turistas de pé descalço” com mochilas de metro e meio às costas, com púcaros a balouçar junto às chinelas. Eram os okupas das estações. Quando desciam no fim da linha, no começo da Meia Praia, muitos dos turistas já tinham sido “assaltados” por mulheres que entravam sôfregas em Portimão. Pelo menos era assim que os meus olhos de miúda as viam. Neste intervalo de apeadeiros jogava-se rápido. Abordavam os “camones” a arranhar o inglês como podiam e, com sorte, desciam em Lagos com um “bife” atrás delas, pronto para ocupar o quarto, bedroom ou zimber, fonte de riqueza do agregado.
Nessa altura a viagem de comboio começava de barco. Em Lisboa apanhava-se o casco do Barreiro, que somava mais 40 minutos ao percurso. No total, 6 horas e mais uns pózinhos, com mudança em Tunes, para chegar ao barlavento.
Hoje, o Alfa já faz a mesma distância em 2 horas e meia, mas só a partir de Faro.
“Que estação é esta?” – pergunta uma teen que viaja com as amigas. “É Grândola” - responde o dono das sandes, das batatas fritas e dos cafés. Enquanto canta a primeira rima da canção, vende um pacote de Fritos ao rapazinho da crista que traz os Sex Pistols às costas. “São 2 euros e 70” – reclama o senhor já pronto para atender o novo freguês, de pólo azul- bebé, sapato vela de sola rasa e franja pela cara: “Um chá de cidreira, por favor”. E mais duas “tropas” que se esqueceram dos comprimidos para as dores musculares.
Ainda avistei a Pensão “Fim de Mundo”. Faz sentido. Foi aqui, pela vila morena, que a minha avó se libertou deste mundo e foi ao encontro do seu companheiro, para uma segunda vida. Ele morreu numa operação, ela de acidente brutal, numa viagem Algarve/Fátima que ficou pelo caminho. Ficaram separados 6 meses.
Voltei ao meu lugar. Pelo caminho ainda troquei olhares com um gato que espreitava pelas grades. A caixa de transporte servia também de mesa de leitura à dona. O pobre felino levava o peso da Conspiração de Brown na tola.
Chego ao lugar C88. À minha frente mas, na fila do lado, lá está o mesmo rapazito, com pouco mais de 10 anos. Ainda não tirou o nariz dos jogos do telemóvel da mãe ou da consola. Esta, de olhar sonolento, vai-lhe dando daqueles sorrisos de canto de boca, quando este mete conversa. Com sorte, atira-lhe com uma ou outra frase, do género “A mãe vai à casa de banho” ou “Já mudaste a imagem do telefone!”. De meia em meia hora tosse os cigarros que fumou antes de embarcar.
Eu troco SMSs sobre o meeting point. Sigo viagem como se o antes não existisse. Como se não tivesse alguém à espera que eu fizesse a viagem de volta. A voz ainda me segredou a meio do percurso, mas rapidamente a fiz voltar de onde tinha saído. Afinal de contas, estou em pleno exercício de MMÁ, ou será que ele não percebeu?
Depois de 3 horas e meia de viagem, o Inter-Cidades leva-me agora pela Ponte 25 de Abril.
Passo pelas Amoreiras. Lembro-me da loja do pão e da primeira Hussel que conheci. O Casal separou-se do morro, desceu para a Avenida. Deixo as Torres Gémeas alfacinhas do meu lado direito.
“Estou nervoso” - Diz um rapazinho imberbe que seguia no banco de trás. Eu também. Chego ao Oriente. Chego a casa. A sensação é de que nunca saí de Lisboa e que o bilhete não é de ida e volta.
Mas é e, no dia seguinte, volto a entrar nos carris. Ocupo o lugar da janela.
A dormência das poucas horas de sono da última semana embala-me no pouca terra, pouca terra. Não durmo, mas não sigo acordada.
A música dos italianos continua entranhada nos meus ouvidos. Ainda sinto os mimos de uma raposinha muito especial, os ecos da conversa sábia e amiga da MMãe, antes de adormecer, o cheirinho bom dos lençois que me embalaram, o sabor do café com leite que me prepararam. A agradável surpresa que foi conhecer algumas MMÁS.
Foi veloz esta viagem de volta! Foi tudo tão depressa.
À chegada tinha uma comitiva V-I-P à minha espera.
Quando o tema já era o que se faz de jantar, salta a pergunta do banco de trás: “Quando fôr grande e vocês já tiverem morrido posso ir ao Mc Donalds com os meus filhos”?
É bom viajar sem cinto, sem penduras, mas também é bom saber que podemos voltar à rotina. Rotina? Alguém falou em rotina? Que rotina?

9 comentários:

putafina disse...

Desculpem os quilómetros, mas isto de nos reencontrarmos numa carruagem...

Isabel Freire disse...

Eu adoro quilómetros. Eu acho que as viagens, as leituras, as mulheres, os repentes, os amores, os sabores, não se medem aos palmos. Tu, definitivamente.

péssima disse...

eheheheheeheh
viagem a repetir com frequência modelada

Isabel Freire disse...

E já agora, aproveito para dizer que adorei ir para a cama contigo!
:)

péssima disse...

ahhahahahhhahahhahahaha
delicious!

putafina disse...

Essa foi uma das memórias que trouxe decalcada na melhor parte do meu cérebro. Quando disseste... "Acho que vou para a tua cama"... e deixaste o homem a dormir sozinho.
girls, girls, girls...

BlueAngel aka LN disse...

Como os meus pais não têm carta, toda a vida viajei de comboio para todo o lado. Talvez, por isso seja ainda hoje um dos meus meios de transporte preferido. Hoje em dia ando muito mais de carro (já conduzo), mas este post trouxe-me á memória viagens de outros tempos e foi saboroso enquanto por lá andei. Obrigada! No ano passado tive oportunidade fazer esta mesma viagem (no Inter, que ainda não haviaa o Alfa) de ida e volta tb e como gostei de recordar estas viagens. Se bem que hoje em dia o conforto e o comodismo oferecidos pela CP nos permitem um passeio mais traquilo e agradável.

Anónimo disse...

Os autocarros da tub...apinhados e malcheirosos, são o meu pao nosso de cada dia.
Odeio andar de autocarro,por causa:
1-dos tempos de espera
2-das greves que quando acontecem sao sem aviso
3-da relaçao qualidade preço
4-do mau humor de alguns motoristas
5-do ambiente abafado quer esteja chuva ou sol
6- dos maus cheiros dos velhotes que perderam o habito de se lavarem
7- da falta de lugares quando vou carregada de livros, ou estou estafada
etc...

Mimi disse...

Olá Snu! Olá anjo azul!
E olá PF, agora com direito a existência física!
Belo post.