sexta-feira, 26 de maio de 2006

A senhora do Congo

Vive cá no bairro há três anos, tem cabeleira ananás, despenteada, lábios grossos, corpo de escavadora, e não gosta do país. Sei, apesar de nunca o ter dito assim: Não, não gosto do país.

Vejo-a daqui, sentada na minha mesa de confessionário. Tem o tronco despido. Amamenta agora mesmo o segundo filho que o supermercado do bairro quase viu nascer justo ao lado da caixa dos euros. Ninguém me contou, descansem que não é boato. Fui buscar umas cenouras para alaranjar a sopa, e lá estava ela! Sentada, pálida, ofegante, volumosa, com a barriga a parir-se para todos os lados e a filha de dois anos a tentar sacar um chocolate à prateleira forrada com bordadinhos a oiro.
A dona do shopping já tinha chamado a ambulância, só que a carrinha de vidros foscos fingia-se surda, parada no trânsito, de agenda ocupada. E a senhora do Congo lá ficou. Os lábios, que já eram grossos, tornaram-se num pastel carvão. Coisa nunca vista. A criança nasceu. Já cavalga no seu dorso para cima e para baixo, a caminho de uma África que só existe na imaginação, faça sol em bica ou bica de chuva.
Intrigam-me ainda os seus lábios negros. Aquele fogo animal de uma mulher sozinha a milhares de voos de voltar para casa. Aquele caminhar cambaleante, a teimosia de não querer ir para o hospital ter um filho, a luta que foi enfiá-la na carrinha, o marido que só chegou muito mais tarde, e uma vida coerciva, entre um filho e o outro, um apartamento de vidraças partidas e o supermercado que faz as vezes da roça.
Acho que os lábios da senhora do Congo são um fenómeno sobrenatural. A Lisboa também tem boca sem ir a Roma, e é negra sem plantar café.

3 comentários:

Cristina disse...

Devia haver a opção de votarmos nos textos... Este de mim ganhava as 5 *s!

Isabel Freire disse...

Olá Cláudia e obrigada pelas estrelinhas!

Caiê disse...

Acho que só os países que se crêem civilizados têm essas mariquices. Espantei-me de voltar há anos atrás a uma cidade onde tinha morado alguns anos e verificar que nesse remoto sítio tinham agora aulas de preparação para o parto. "Para quê? Vocês sempre tiveram filhos sem essas parvoeiras de ensinar como os ter" perguntei. Mas têm, agora. E pagam uma pipa de massa! Olaré!