Vejo-a daqui, sentada na minha mesa de confessionário. Tem o tronco despido. Amamenta agora mesmo o segundo filho que o supermercado do bairro quase viu nascer justo ao lado da caixa dos euros. Ninguém me contou, descansem que não é boato. Fui buscar umas cenouras para alaranjar a sopa, e lá estava ela! Sentada, pálida, ofegante, volumosa, com a barriga a parir-se para todos os lados e a filha de dois anos a tentar sacar um chocolate à prateleira forrada com bordadinhos a oiro.
A dona do shopping já tinha chamado a ambulância, só que a carrinha de vidros foscos fingia-se surda, parada no trânsito, de agenda ocupada. E a senhora do Congo lá ficou. Os lábios, que já eram grossos, tornaram-se num pastel carvão. Coisa nunca vista. A criança nasceu. Já cavalga no seu dorso para cima e para baixo, a caminho de uma África que só existe na imaginação, faça sol em bica ou bica de chuva.
Intrigam-me ainda os seus lábios negros. Aquele fogo animal de uma mulher sozinha a milhares de voos de voltar para casa. Aquele caminhar cambaleante, a teimosia de não querer ir para o hospital ter um filho, a luta que foi enfiá-la na carrinha, o marido que só chegou muito mais tarde, e uma vida coerciva, entre um filho e o outro, um apartamento de vidraças partidas e o supermercado que faz as vezes da roça.
Acho que os lábios da senhora do Congo são um fenómeno sobrenatural. A Lisboa também tem boca sem ir a Roma, e é negra sem plantar café.
As ‘mmás’ são um espaço e um tempo para experimentação não isolada. Uma forma de sair do armário da maternidade, com liberdade para que mães, mulheres anónimas, se exponham, se interiorizem, se lembrem, se banalizem, se encontrem, se distanciem, se analisem, se ilibem ou o que bem entenderem.
sexta-feira, 26 de maio de 2006
A senhora do Congo
Vive cá no bairro há três anos, tem cabeleira ananás, despenteada, lábios grossos, corpo de escavadora, e não gosta do país. Sei, apesar de nunca o ter dito assim: Não, não gosto do país.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 comentários:
Devia haver a opção de votarmos nos textos... Este de mim ganhava as 5 *s!
Olá Cláudia e obrigada pelas estrelinhas!
Acho que só os países que se crêem civilizados têm essas mariquices. Espantei-me de voltar há anos atrás a uma cidade onde tinha morado alguns anos e verificar que nesse remoto sítio tinham agora aulas de preparação para o parto. "Para quê? Vocês sempre tiveram filhos sem essas parvoeiras de ensinar como os ter" perguntei. Mas têm, agora. E pagam uma pipa de massa! Olaré!
Enviar um comentário