quarta-feira, 8 de março de 2006

A propósito da essência das coisas....

"Aconteceu-me uma vez, numa encruzilhada, no meio do vaivém da multidão.
Parei e pestanejei: não percebia nada. Nada, nada mesmo: não percebia as razões das coisas, dos homens, era tudo sem sentido, absurdo. E pus-me a rir.
O estranho então para mim era que nunca tivesse dado por isso antes. E tivesse até esse momento aceitado tudo: semáforos, veículos, cartazes, fardas, monumentos, aquelas coisas todas afastadas do sentido do mundo, como se houvesse uma necessidade, uma consequência que as ligasse umas às outras.
Então o riso morreu-me na garganta, e corei de vergonha. Gesticulei, para chamar a atenção das pessoas que passavam e – Parem um momento! – gritei, - há qualquer coisa mal! Está tudo errado! Só fazemos coisas absurdas! Este não pode ser o caminho certo. Aonde vamos parar assim?
As pessoas pararam à minha volta, e observaram-me, curiosas. Eu estava no meio, gesticulava, fazia tudo para me explicar e fazê-los participar do lampejo que me iluminara de repente: e fiquei calado. Calei-me porque no momento em que levantei os braços e abri a boca, a grande revelação foi como se a engolisse, e as palavras saíram-me assim, por causa do balanço.
- E então? – perguntaram as pessoas, - o que quer dizer? Tudo está no seu lugar. Cada coisa é consequência de outra. Todas as coisas estão ordenadas com as outras. Não vemos nada absurdo ou injustificado!
E eu fiquei ali, desorientado, porque à minha vista tudo voltara ao seu lugar e tudo me parecia natural, semáforos, monumentos, fardas, arranha-céus, carris, pedintes, cortejos; porém daí não me vinha tranquilidade, mas sim tormento.
- Desculpem – respondi. – Talvez esteja enganado eu. Pareceu-me. Mas tudo está no lugar. Desculpem – e fui abrindo caminho por entre os seus olhares tensos.
Contudo, mesmo agora, sempre (muitas vezes) que me acontece não perceber alguma coisa, então instintivamente vem-me a esperança de que seja de novo a vez certa, e que eu torne a não perceber mais nada, a apoderar-me daquele saber diferente, achado e perdido no mesmo instante."

Lampejo, in Memórias do Mundo, Italo Calvino, Estórias, Editorial Teorema

3 comentários:

Mimi disse...

Bravo! Bravo! clap! clap! clap!
É mesmo isto. ET phone home

Anónimo disse...

Este excerto fez-me lembrar o livro do Saramago "Ensaio sobre a Cegueira", de repente tudo mudou, para voltar tudo ao normal. É assim mesmo, às vezes temos instantes luminosos, mas estamos neles sempre sozinhas...apenas só connosco mesmas.

Isabel Freire disse...

As coisas estarem no seu lugar! Outro dia andei aqui a mudar o lugar dos móveis em casa, e percebi que as coisas não estavam no seu lugar anteriormente. Agora parecem-me no sítio certo.
De manhã, antes de sair de casa - para logo voltar, pois é aqui que trabalho - tenho a mania de apanhar as coisas e pô-las no lugar. Insisto com o meu companheiro para me ajudar nesta tarefa, alegando que este é o meu escritório, que não quero trabalhar com a cabeça ainda mais enfiada nos objectos de casa espalhados por todo o lado. Mas a verdade é que este é que não é o meu lugar. Preciso trabalhar noutro sítio!

Bom, vou arrumar os objectos e dejectos desarrumados do almoço, que por aqui circulam em cima da minha mesa de trabalho.