quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

Clara e o 'cabrãozinho'

O quarto onde eu e a raposa pernoitámos três longas jornadas era o pior da maternidade. O aquecimento central não se podia desligar ou regular. Parecia que estávamos na estufa de uma floresta dos trópicos, com uma fauna prodigiosa a criar-se e desenvolver-se no meio da folhagem e da humidade. O berço imaculado e translúcido onde a minha pequenina se deitava fora colocado ao lado do calorífero preso na parede. Só ao segundo dia percebi que a menina não estava bem no meio de tantas palhinhas. Suava e desmoralizava, perante uma antevisão do que deveria ser o seu novo mundo: um autêntico banho turco. Eu sofria também com a temperatura e a dada altura optei por fazer vida no corredor onde se podia respirar, para espanto do resto da população daquela maternidade, que não conseguia perceber o motivo pelo qual duas mulheres (eu e a minha room-mate) passavam o tempo de mama ao léu, com os bebés a tiracolo a observar o tráfego no corredor. Eu e Clara (uma mãe de 20 anos a quem vi passar em esforço para a Sala de Expulsão, pouquíssimos minutos depois de eu a ter abandonado, para ter o seu “cabrãozinho”, um bebé impressionantemente cabeludo), Clara e eu. As duas daquele quarto. A minha companheira e mãe deste contemporâneo da raposa vinha da Musgueira Norte, tinha uma dentição muito mal tratada, e parecia claramente mais velha. Passava o tempo a dar de mamar ao seu “menino”, como se tivesse um nenuco nas mãos e soubesse das mulheres mais velhas da família que era bom dar-lhe de comer sempre que ele quisesse e quanto mais melhor, para cedo se fazer um homem “e ir às putas”, uma frase que lhe cheguei a ouvir naquele quarto. O seu “cabrãozinho”, era assim que lhe chamava, era um bebé feio sem sombra para dúvidas. Até ao pai, um tipo com áurea aromática (a óleo de motor de carros), até a ele lho ouvi dizer: “És mesmo feio, caramba”. A criança, comprida e muito esguia, tinha um tom multicolor na cara, que oscilava entre um rosado e um amarelo de icterícia. Além disso, parecia um homem velho num corpo imberbe.
Clara trabalhava numa pastelaria, e ficou grávida do namorado de 36 anos, que se alegrou com a boa nova e a convidou a viverem juntos na sua casa de cinco assoalhadas, e paredes forradas de humidade. “Eu não queria, mas aceitei”, disse-me transparecendo profundo desencanto quando falava sobre aquele homem. Cheia de fantasias de bonecas na cabeça, a minha companheira de quarto passou aqueles três dias a sonhar com o enxoval azul do bebé, que queria estrear no dia em que fechasse a porta da maternidade e entrasse no bairro da Musgueira sentada no carro do marido, orgulhosa de um menino tão fortalhaço dentro de um fatinho tão jeitoso – foi a madrinha que ofereceu a indumentária. E Clara, antes de a envergar corpinho acima, pô-la em estado de exposição sobre a cama, olhou, suspirou e fotografou carinhosamente. Parecia as montras que a PJ faz para a televisão quando apreende grandes quantidades de haxixe, telemóveis, dinheiro falso e duas ou três armas. Tudo alinhadinho, como na farmácia, e dobradinho até à exaustão. Aquilo durou horas, parece-me.
Quando Clara entrou naquele quarto eu alegrei-me de ter alguém ali ao lado para conversar um pouco. Tive esperanças de que fosse uma mulher com quem pudesse partilhar qualquer coisa. E pude, de facto, mas houve momentos em que já só suplicava por silêncio. Era uma menina de bom coração, que tinha no currículo a adopção corajosa de uma bebé lá do bairro, cuja mãe tinha desaparecido do mapa e o pai era toxicodependente. A criança de dois anos chamava-lhe mãe e apesar de não ser oficialmente sua filha, andava a travar essa luta com a burocracia. Confesso que fui desenvolvendo algum carinho por ela apesar de ter vontade de lhe chamar tontinha cada vez que a ouvia proferir os chavões desusados da sua avó ou bisavó. Foram dois ou três dias de exercício de memorização das frases mais inócuas do senso comum mais comum. E até fiquei ligeiramente decepcionada quando, no dia em que tivemos ambas alta, agarrou nas malas e foi-se embora, do alto do seu fato de treino Adidas, como manda a moda do subúrbio, sem dizer água vai água vem. Eu tinha ido à casa de banho, e olha, quando voltei já lá não estavam. Nem um adeusinho. Bem sei que estava desesperada, que queria ir mostrar o “cabrãozinho” à família, desfilar com ele nos becos do bairro, que chorara várias vezes nas derradeiras 24 horas, depois de saber que não teria alta ao segundo dia, mas sim ao terceiro, exactamente como eu. Sim, sei isso tudo, que Clara estava bem mais solitária naquele quarto. Entendo. O seu companheiro aparecia atrasado e saía três horas antes de a visita dos pais terminar, enquanto eu ficava lá no quarto, mesmo ali ao seu lado, entretida com o meu companheiro a mimar a nossa raposinha. Era duro para Clara que acabava por adormecer horas sem fim, ao lado do seu menino feio que lhe parecia lindo. Graças à minha curiosidade fiquei a saber muitas coisas sobre a sua vida, mas Clara não quis saber nada sobre a minha. Precisou de um dia para decorar o nome da minha filha e de dois para memorizar o meu. Malgrado esta apatia sobre o mundo à sua volta – pois se ela já tinha um provérbio para tudo – falava sem parar sobre temas variados, tinha saudades da televisão, e respondia de forma altamente graciosa a situações como a da vacina do menino. Veja-se: “Aquela puta, se fosse espetar a agulha na cona da mãe dela fazia bem melhor!”.

9 comentários:

Anónimo disse...

ehehehehe!
já te disse hoje que escreves muito bem?

No meu primeiro parto fui, pouco convencida, para a Alfredo da Costa. Um dos meus problemas do foro burguês era ter que partilhar quarto com outras mulheres. Além disso, era esse o motivo pelo qual não poderia ter o pai comigo 24 horas por dia. Mas, surpresa das surpresas, o que eu gostei de ter outras mulheres ali! Não eramos duas, mas seis. Havia a adolescente de 15 anos no máximo; havia a preta national geographic que não falava e não tinha um pingo de leite nas enormes mamas; havia a Mónica, uma médica top model minha conhecida (a coincidência!) que saiu de lá de saia justa e salto alto; havia a quarentona insuportável e viciada no telemóvel que já tinha dois filhos crescidos e que "por amor" (um mui estranho amor) dava agora um bebé ao segundo marido; e havia a minha companheira do lado que parira o terceiro filho e aproveitara para laquear as trompas, de quem me tornei inseparável naqueles longos QUATRO dias. Era a sala das cesarianas.
A minha companheira do lado também vinha dum desses bairros suburbanos. Mas não praguejava e não teve um bebé feio. Era lindo o bebé dela e o meu também. Foi ela quem tomou conta da Maria Beatriz sempre que tive que ir à casa-de-banho. O meu pânico de que me roubassem o bebé era tal, que quando a Mónica se foi embora eu comecei a recusar-me a ir à casa-de-banho. Ela percebeu e tornou-se a guardiã oficial da minha preciosa primogénita. De tal forma que, no dia em que a irritante família da irritante quarentona super-fada-do-lar-e-boa-esposa se resolveu aproximar da minha bebé, ela avisou, em tom sério, enquanto eu rosnava baixinho: "cuidado, ela morde e não gosta que lhe toquem no bebé!". A irritante família despareceu num instante.
Ficámos cúmplices. Ela saiu um dia antes de eu ter tido alta e levou as flores todas que me ofereceram. Eu não queria as flores por causa das alergias, ela só queria que lhe tivessem enviado uma erva daninha qualquer. Levou também todos os brindes publicitários que recebemos: leite em pó, cremes, fraldas, dodots, vales de desconto. Não trocámos telefones, mas trocámos abraços apertados na despedida. Fiquei fã das enfermarias colectivas.

Isabel Freire disse...

Inês,... tu és mesmo de carne e osso, ou és mais uma alucinação dos meus dias?
Acho que no próximo parto (outra forma de alucinação, dá-me ideia), escolho a megastore Alfredo da Costa. A tua equipa (parece coisa de Jogos sem fronteiras) era absolutamente completa. Não vejo nenhum cromo repetido, e acho que não faltava ninguém.
Eu tb tive a paranóia de voltar ao quarto e... ops, cadé a miúda? Além disso, naquela maternidade (Santa Maria), havia um quarto onde ficavam as mulheres sem crianças (vítimas de aborto ou qualquer parto que corresse mal). Nunca compreendi como é que se pode fazer uma coisa destas a alguém. A Pide estaria ao mesmo nível de criatividade na crueldade. Lá estava uma mulher, deprimida, envergonhada, super triste, com os sacos ao lado, e sem companhia nenhuma, no meio daquela sinfonia de choros e gemidos infantis.
Socorro!

Anónimo disse...

olha, eu todos os dias acordo e não tenho bem a certeza se existo ou não, por isso não me confundas mais!

eu juro que não sou invejosa das tuas experiências, mas a verdade é que no meu segundo parto tive também por companhia (ou não, porque esta não interagia) uma mulher que acabara de fazer um aborto. achei cruel porem-na ali, a olhar para os nosso bebés (e ela não olhou) e mais cruel ainda o médico que, fazendo a consulta em voz alta (muito alta), nos informou a todas que aquela que não tinha bebé (mas tinha um berço vazio) só não o tinha porque não quis um filho deficiente.
Comentei a crueldade com o meu médico (uma pessoa muuuito importante na MAC), que me informou que se ela ali estava era porque a enfermaria para mulheres sem filhos estava lotada.

péssima disse...

Pois eu estive três vezes no Santa Maria, e não tenho nenhuma história negativa a contar sobre o hospital.
Da primeira, uma aborto. Um feto morto. Apenas me lembro do frio que sentia. E nunca me atrevi a atribuir culpa às instalações.
Da segunda um nascimento normal, por vias normais, com as dores normais. Lembro-me de só tomar consciência de mim algumas horas após o parto. No quarto de seis lembro-me de duas personagens, nem sequer me recordo se não havia mais ninguém ou se não me forma importantes. Uma delas africana que pouco falava, acho que era o sorriso constante que não lho permitia. Outra que não se calava, penso que era o ódio à vida que não a deixava calar, a cria era igual. Tirando isto quase nada se impregnou na minha mente.
Da terceira um parto por cesariana, simples, normal como ter ido, de camisa de dormir, beber café a algum lado. Aqui recordo-me de não ter querido o meu filho a meu lado por não me sentir capaz de o segurar. Só umas horas mais tarde pedi para mo trazerem. Estranhamente parecia o meu primeiro filho de tão desajeitada que me sentia a pegar naquele ser tão frágil. Neste quarto havia uma mãe que chapei de normal por ter hábitos parecidos com os meus. Outra tão babada que só fazia disparates com ansiedade de ser a mãe perfeita (agora que me recordo, esta mãe é um bom tema de discussão, deixo-o para outra altura), uma mãe translúcida, porque nunca se dava por ela, nem pela filha, de tão subtis que eram ambas, e uma daquelas que a Inês referiu como top-model, com apelido de seis nomes. Esta última recorda-me uma sensação, que ainda não concretizei como desprezo, sempre a ouvia referir que em casa tudo seria diferente já que as empregadas dariam toda a atenção necessária à filhinha querida cuchi-cuchi.
De todas as vezes tenho a agradecer a simpatia dos médicos, a do médico africano que ficou com o braço esbranquiçado quando me agarrei a ele no primeiro parto, a do médico que se dedicou a coser-me quarenta e muitos pontos (tenho deste a imagem caricata de, entre desmaios, ver uma cabeça entre as minhas pernas com óculos na ponta do nariz, pontinha da língua no canto da boca, iluminado com uma luz que o contrastava numa aura engraçada), a anestesista que contava piadas eróticas, foi assim que pari num estado de inconsciência tranquilo, as enfermeiras sempre bem dispostas e as auxiliares sempre prontas.
O estranho é que quando crescem, depois de crescerem, fica tudo enevoado como que lembrança de outra vida, com uma personagem que não eu.

Isabel Freire disse...

...esquece-se rápido. Foi por isso que nos 4 meses de licença de parto descrevi em perto de 40 páginas tudo o que me aconteceu desde que rebentaram as águas até sair da maternidade (pormenores milimétricos), e mais um capítulo sobre o que estava a viver naqueles primeiros meses de vida da raposa. Foi a alternativa que encontrei para um projecto que saiu furado. Tentei fazer uma reportagem radiofónica. Instrui o meu companheiro, expliquei-lhe como fazer, quando gravar, o que gravar, que perguntas fazer às pessoas que entrassem no filme (eu inclusivamente, e sem escrúpulos de me registar os berros e os insultos) - adverti-o sobretudo para a necessidade de resistir ao momento em que lhe dissesse tira-me essa merda daqui,... "Querrro morrrrrer!!!!!!!". Enfim, o registo audio existe até certa altura em que a noite cai e eu fico sozinha, despida de tudo e dele também (não deixavam os pais estar presentes durante a noite). Então o que fiz foi entreter a minha cabeça a fixar todos os pormenores, analisar as pessoas, entrevistar quem me passava pela frente (anestesista, enfermeiras,... e por aí fora). O Santa Maria é um lugar muito especial para mim, tb eu fui muito bem tratada.
E este conto é um presente muito importante para a minha filha, em primeiro lugar, mas tb uma forma de pacificar a violência voltaica volátil de dar à luz.

Anónimo disse...

Péssima: os dois africanos eram brancos ou pretos? E tens mesmo a certeza de que eram africanos? Eu conheço portugueses pretos e africanos brancos...

péssima disse...

: )
Africanos, referia-me ao continente, não à cor propriamente dita. Ele era preto azulado, ela mulata. Ele estava cá em estágio (pelo menos assim me pareceu) e ela veio com o propósito de parir, tinha um filho e um marido que a aguardavam no país de origem que, honestamente, não sei, não retive.

Isabel Freire disse...

Além disso, há ainda outras duas variantes: preto como branco, e branco como preto. São os casos dos filhos de migrantes que vivem nos guetos e falam crioulo desde meninos. Ou os pretos de São João do Estoril que nunca pisaram África e acham os ritmos insuportáveis! Vertentes mais psico-sociológicas, obviamente.

Anónimo disse...

Preta azulada - era exactamente assim a mamã sem leite nem palavras que esteve na mesma enfermaria que eu :)