quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

O Homem ou é Tonto ou é Mulher

Cheguei atarefada, como de costume.
Depositei as chaves, mala, tabaco e telemóvel em cima do balcão para conseguir tirar o bilhete. Encolhi os ombros e sorri ao interceptar o entreolhar das duas meninas já divertidas com o meu ar esgrouviado.
Ah! Cá está! Venho levantar este bilhete!
Mais uma vez olharam-se e muito devagar, para terem a certeza que eu as entendia, disseram-me… olhe que estes bilhetes não são nossos, está no teatro errado!
Ora bolas, até tinha estacionado mesmo em frente à porta e tudo.
Comecei a subir a rua, a pé, redizendo mentalmente as informações que me tinham dado: sobe e tem de passar a rua para o lado de lá, depois desce nas escadinhas, sobe e tem de passar a rua para o lado de lá, depois desce nas escadinhas. Parecia fácil. Subi, passei a rua para o outro lado, mas dei de caras com um muro de obras, sem escadas!
Atrasada, decidi perguntar a um homem marroquino (na realidade era a única pessoa, para além de mim, naquela rua escura): Ó menina, não é aqui mas sim do ‘outro’ outro lado da ‘outra’ outra estrada, o melhor é vir comigo!
E eu fui, em passeio de conversa simples com um perfeito desconhecido, até ao contacto visual com o edifício do teatro certo.
Despedi-me do ‘tenha uma vida feliz’ dele.
Quando cheguei à recepção avisei que afinal o convite de duas pessoas não era para duas pessoas mas sim para uma pessoa, apenas uma pessoa, sim, apenas uma pessoa, mas porquê uma pessoa se o convite era para duas pessoas? porque é apenas uma pessoa e não duas pessoas que querem o bilhete, mas o convite é para duas pessoas, mas eu sou uma pessoa não duas pessoas! Depois de resolvida esta questão matemática ainda tive tempo de beber um café. Consegui um cantinho encostada ao balcão do bar e pedi um café curto. A menina serviu-me um café duplo. Não reclamei, depois de tudo até achei normal, no meio do barulho, o entendimento de duplo em vez de curto.
Finalmente sentada no primeiro lugar do último patamar.

«Estou de novo sozinho. Mas agora estou em cima do escadote. É melhor. (Olha para todos os lados. Tédio) Afinal é igual.»

Já há muito tempo que não me envolvia, de forma tão intensa, com um espectáculo. Recomendo-o.


A Colher de Samuel Beckett
Um homem sozinho espera num local onde não há ninguém, apenas seis escadas. Com uma vida reduzida ao essencial, no topo de cada escada o homem tem apenas uma acção para executar. Escreve, bebe água, vê as horas, come... Para que o seu pequeno mundo se complete falta uma colher. A peça está em cena até Abril no Teatro da Comuna, em Lisboa.

Indicações:
Teatro da Comuna (Pç. Espanha, Lisboa)
Terça e quarta às 21h30 (5 a 10 euros)
Actor: Álvaro Correia
Autor: Gonçalo M. Tavares
Encenador: João Mota

10 comentários:

Anónimo disse...

ehehehehehehehe! o toque final do café é lindo, até porque eu tb gosto da bica curta e há dias em que já não me apetece tentar desfazer mais nenhum equívoco, nem que seja o tamanho do café. É que implica sempre ter que falar de novo com o tipo que está atrás do balcão, ficando sempre no ar a dúvida sobre se se pediu ou não um café curto ou se foi o empregado que não ouviu...

Quanto à peça, deve mesmo ser óptima. Gosto muito do Gonçalo M. Tavares e gosto muito de Becket, Teria ido ocupar o outro bilhete de bom grado ;)

péssima disse...

Ora, este próximo domingo trocamos os números de telemóvel!

Isabel Freire disse...

Gonçalo M. Tavares é um dos meus autores portugueses contemporâneos favoritos. Gosto muito. Vou ver se consigo lá ir.
Gonçalo M. Tavares nasceu em 1970.
Tem vasta obra publicada.
É um escritor acessível, sem peneiras nem tiques de pavão.
E aqui está um execrto do livro "O Senhor Henri":
"...é verdade que se um homem misturar absinto com a realidade fica com uma realidade melhor.
... mas tb é certo que se um homem misturar absinto com a realidade fica com um absinto pior.
... muito cedo tomei as opções essenciais que há a tomar na vida - disse o senhor Henri.
... nunca misturei o absinto com a realidade para não piorar a qualidade do absinto".
Eu tenho uma noite de absinto no currículo, que a minha irmã ainda se deve lembrar muito bem,... coitada. Teve de me despir, mudar os lençóis da cama, e aturar uma realidade muito absintada. Perdi tudo nessa noite, menos os membros do corpo. E na Alemanha, quando lá vivi, o dono de um bar que encomendava absinto a todos quantos visitavam o nosso país, insistia que eu, por ser conterrânea das garrafas, tinha de beber um shot cada vez que lá punha os pés... miséria a minha! Nunca consegui explicar-lhe que detestava o líquido esverdeado. Tentei de tudo. Era impossível. A realidade dele tinha sido profundamente alterada pelos graus gigantes da bebida alucinogénica. Foi aí que aprendi a deitar o lixo para debaixo do tapete (quer dizer, emborcar os copos para debaixo da mesa). Foi o último recurso, mas nunca me livrei da alcunha 'Senhora Absinto', nas ruas daquele bairro berlinense.

Anónimo disse...

Peguei no primeiro livro que li do Gonçalo M. Tavares (Jerusalém) com pouca confiança. O escritor estava já a ser muito elogiado pelos suspeitos do costume, os mesmos que elevaram aos píncaros José Luís Peixoto e Jacinto Lucas Pires.
Jacinto Lucas Pires escreve com os pés e José Luís Peixoto quer ser o Saramago quando for grande. Não gosto nem de um nem de outro.

Ainda assim peguei no Jerusalém, porque gosto de ler o que escrevem os da minha geração. Sem grandes expectativas. Comecei a ler, e a ler e a ler... e devorei aquilo tudo até ao fim num instante. Ninguém conseguiu interromper-me. Jerusalém é muito bom, tal como a série Senhores. Até agora só não engracei com as tabelas literárias.

Isabel Freire disse...

O calendário do Blog anda um bocadinho atrasado ou é impressão minha?

péssima disse...

teste horário!

péssima disse...

Não!
parece-me que não, são realmente 12:07.

Isabel Freire disse...

pois... mas hoje não é dia nove, ou é?

Isabel Freire disse...

sou eu que estou fora de horas... e de dias.
:)

péssima disse...

Bem WW, confesso que tenho um bom suporte no ‘poder das horas’, de outra forma nem me atreveria a ter suposições, quanto mais decisões.
;)

Bom fim-de-semana?!?!?!?

Até Domingo, não é?

(já esgotaste as boas desculpas)
ehehehehehe