terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

Outras mulheres, outras histórias anónimas

Quando pus os pés fora da sala amarelecida por sete maços de cigarros que J lá acende e apaga diariamente há uns quatro anos, vinha com uma mágoa no peito tão carnívora, que descer a Rua da Rosa mais me pareceu trepar um penhasco lamacento, com as ondas a estoirarem em mono nos meus tímpanos mudos, que nem gatos atrás de ratos. Eu desci aquela rua, tirei o carro do estacionamento, enfiei-me no trânsito para gente grande, escoei pela avenida do Alecrim, dei de caras com as filas habituais, os sinais vermelhos atrás dos amarelos, as manobras dos braços mais ou menos peludos aos volantes dos seus carrinhos bem inspeccionados, e mesmo aí, ainda vinha com a angústia das conversas daquela sala onde todos os dias J ouve e estende a mão a 'gente maldita'. O compartimento fica na Rua espinhosa, em Lisboa, tem uma campainha discreta e um cheiro nauseabundo a mijo velho nas escadas de acesso. São em madeira e rangem até à soleira da porta. Lá em cima, no primeiro vão, J aparece com uma discrição invulgar. Estamos na sala de fumo da capital. Uma sala de fumo, entre tantas. E J abre-a todos os dias de manhã, como se abrem os bairros fiscais das finanças, as bibliotecas públicas, os notários e os cartórios. Foi ali naquela sala que vi entrar a mulher que já foi homem, e foi no mesmo sofá de cabedal negro cheio de pulgas e mágoas alheias que ouvi de raspão, como que é ser puta mais de uma década. W - chama-se assim quem um dia foi João ou Fernando, só deus no céu ou o pai na terra saberão. Eu não lhe perguntei. W transsexual, a mulher barbada que vagueou maquilhada quilómetros de luar na Av. da Liberdade em Lisboa, madrugadas geladas nos Campos Elísios, esses de Paris, e nos outros campos de Milão, nas praças de Madrid, nas ruelas do vinho e nos cálices do Porto. Na primeira de todas, a avenida que tropeça para o Tejo lamacento esgotado de terramotos, regicídios, engarrafamentos, correrias de magotes de gente para apanhar os barcos, foi nessa mesma avenida que o pai de W, presidente de uma qualquer Junta de Freguesia, uma qualquer mesmo, não interessa, mas um homem enraivecido pela escolha do filho, foi ali que W descobriu que afinal esse pai aturdido também gostava de homens musculados por debaixo das meias de renda e dos brincos que rasgam orelhas com o peso enjoativo do pechisbeque. W conta o episódio com orgulho, quase vaidade. Descobriu nesse dia que no íntimo de tanta tormenta aquele pai a terá compreendido em cada miligrama de esperma vertido quando penetrado por mulheres ‘penislizadas’, as mesmas que nos sonhos lhe arrancavam o filho aos braços de Maria, com zombaria de bruxas. Foi uma parceira de metamorfose que lhe disse assim, tão resumidamente: “Ontem amanhaste um belo cliente, paga bem que se farta”. Só que o carro onde aquelas 'putas' a tinham visto entrar era afinal e apenas o Renault do pai de W, que uma vez mais a tentava resgatar à Sua humilhação, encapuçado de vergonha.
W, sentada à mesa da sala de fumo, arranja o cabelo pálido. J olha-a amorosamente. Sente-o, sente-se peça de museu, pegada de gaivota na madrugada entre as dunas. J e W não se amam, apesar da intimidade, do apartamento em que partilharam contas, bidés, ressacas e zapping. Até foram apanhados a dormitar abraçados num sofá da recepção do hotel onde W trabalhou no Porto, enquanto estudava francês na faculdade. Nessa altura disfarçava-se do 'outro', um eu com sexo masculino - ego asqueroso, quase, esse estranho recalcado em mente vaginal. Quando as línguas se esgotaram, voltou às ruas, na exuberância dos saltos vertiginosos, para guardar segredos de homens casados, solteiros, viúvos, e outros, desejosos de pénis com mulher atrás. W transsexual ouviu baixinho o que poucas paredes escutaram. Ganidos gemidos em cima da carroçaria de automóveis. Nos colchões gastos de fodas a dez euros. Em muitos mais sítios do que a minha vontade e conhecimento podem descrever.
Na cidade das caves, num beco deserto, esta mulher arcanjo foi violada por oito machos, já noite alta. Estendida no chão, de ânus rasgado e ferido, W foi juntada em bocados e levada para as urgências de um hospital com o VIH acabado de nascer silenciosamente no físico de um espírito envinagrado. Violação brutal de um, mais outro, e outro, e ainda outros dois, e mais um trio para fechar a obra prima. Homens viris, supõe-se, sedentos de humilhação e escárnio, a disfarçar o prazer de um festim carnívoro partilhado nas unhas sujas de sangue e nas mandíbulas babadas de pele rasgada. W é seropositiva, largou a rua de vez, até um dia, até mudar de ideias. Custou-lhe os olhos da cara, deixar de vender o corpo duplo, ainda lá voltou uns tempos, depois de saradas as feridas, mas agora passa os serões em casa. 44 anos queimados na palidez da neve, na negrura do frio, na rotina das horas contínuas a maquilhar e desmaquilhar à entrada e saída do jacuzzi em apartamentos de convívio sexual - preparativos sem fim de um full time job que experimentou em terras madrilenas, um megastore com ementa sexual para todos os apetites.
Esta mulher de seios proeminentes, mas frágeis, que pareciam desfalecer-se a qualquer abano de leque, pejada de make up, make me up, deambulava na sala de fumo de um lado para o outro com uma altivez masculina no tronco, e uma gentileza de donzela no tirar os cabelos da cara inchada de químicos que tomou nos últimos quinze anos para lhe empurrar a maçã de Adão para a bochecha de Eva. Fiquei aturdida. Confusa. Nem sabia explicar a dimensão daquela dor. A dor que tive ao olhar para os lábios tortos do peso do silicone, a falta dos dentes, e as palavras que davam um bocadinho da dimensão do que a mim me pareceu naquele instante, uma representação da tragédia. A ela nem por isso. Eu estava derrotada. Quando desci a Rua da Rosa, pensava a minha vida como, como aquela coisa do cinema em que os tiros são só a fingir, os duplos fazem as cenas perigosas, os efeitos especiais parecem a sério, mas só isso, e se alguma coisa correr mal desliga-se o power. Parecia-me que afinal a minha vida é que era trágica, a tragédia do faz de conta, nem doce nem salgada, num limbo de protecções desmesuradas. Não sei. Durante a descida da Rua da Rosa, eu só queria ficar sem memória um bocado, esquecê-la e a mim também.
The girl lost her libido walking on the street. Step on a piece of glass and cut her feet not so deep.

PS: Neste país é difícil trabalhar sendo-se transexual. A prostituição é um caminho para muitas quase inevitável. Há prostitutas não se deixam operar, pois muitos clientes são ditos heterossexuais, com a fantasia de serem penetrados por uma mulher.

3 comentários:

Mimi disse...

Não havia aí um projecto de escrever coisas nas reuniões?

Isabel Freire disse...

Fizemos uma experiência. Primeiro a discutir a história em voz alta e a tentar desenvolver-lhe acção. Como aquilo ficou bastante confuso, optámos por a escrita cega do redige e passa.
... não ficou grande charuto, mas tb foi só a primeira tentativa.

putafina disse...

Porra, VW, ainda bem que há jornas como tu a desencavar estas vidas!
A minha curiosidade em relação à de W era big, agora sinto-me small!
Como não?
Onde está o gin?